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Trajetória da professora Zélia Amador do movimento negro vira documentário

A primeira vez em que lembra de ter sofrido racismo, a professora emérita da Universidade Federal do Pará, Zélia Amador, tinha pouco mais de nove anos. Filha de uma empregada doméstica vinda da ilha do Marajó, no Pará, Zélia fazia os primeiros anos numa escola administrada por freiras. As notas chamavam a atenção. Não menos que a cor de sua pele, descobriria depois. A escola ia fazer um espetáculo de dança, baseada em religiões umbandistas. A freira-professora perguntou quem gostaria de participar. Zélia levantou o braço. A irmã optou por uma menina branca. “Ela tinha uma cara de cavalo”, lembra Zélia. Para justificar, a professora explicou que naquelas atividades sempre eram escolhidas meninas mais ‘ajeitadinhas’. “E eu não me achava desajeitada, pelo contrário”, lembra Zélia Amador.

Muita água passou por baixo da ponte desde esse primeiro despertar para o preconceito vivido por essa mulher paraense preta. Zélia se tornou militante estudantil, ingressou em siglas clandestinas esquerdistas que combateram a ditadura, revolucionou o teatro paraense, à frente do grupo Cena Aberta, foi uma das fundadoras do Centro de Estudo e Defesa do Negro no Pará, lutou pela implantação das cotas raciais na UFPA. É considerada atualmente um dos principais e históricos nomes do movimento negro não só na Amazônia, mas no Brasil. E toda essa história está se tornando filme.

Amador, Zélia é um curta-metragem documental paraense cujo projeto foi contemplado pela Secretaria de Estado da Cultura (Secult) por intermédio do Edital Aldir Blanc Pará Audiovisual. Em quase meia-hora refaz a trajetória de Zélia Amador, da infância aos dias atuais, quando obteve o reconhecimento da Academia ao ser homenageada como professora emérita da UFPA. E utiliza, para isso, diversas linguagens. Há partes dramatizadas como se fosse um monólogo teatral e há partes feitas em animação, compondo com o formato tradicional de documentário uma história repleta de luta pelo reconhecimento das pessoas negras na sociedade amazônica.

O argumento, roteiro e codireção do documentário é do jornalista e roteirista Ismael Machado, que tem no currículo a série documental Ubuntu: A Partilha Quilombola, exibida no Canal Futura. A produção marca também a estreia de uma nova produtora audiovisual no estado, a Floresta Urbana. Quem também assina a direção do curta é Glauco Melo, o diretor de fotografia da obra.

“A história de Zélia é inspiradora para toda a sociedade, principalmente nos tempos de retrocessos que estamos vivendo”, resume Glauco Melo ao refletir sobre a ideia de documentar a vida e a obra de Zélia Amador. Uma das ideias propostas no roteiro de Ismael Machado foi a de sublinhar algumas passagens da trajetória de Zélia com uma dramatização simulando um monólogo teatral. Quem assume esse papel é a atriz e ativista cultural Carol Pabiq.

A atriz tem experiência, mas estava afastada dos palcos e das câmeras há cerca de dez anos. Iniciou a carreira nas artes cênicas em 2005 quando ingressou na Cia Atores Contemporâneos dirigida por Miguel Santa Brígida. Atuou e modelou em campanhas publicitárias. Atuou no cinema, ganhou prêmio de melhor atriz no curta “Luz” (2010). ‘Amador, Zélia’ foi um reencontro com a arte da interpretação.
“Costuma-se chamar de ‘prêmio’ ou de ‘presente’ quando a gente recebe um trabalho para dar vida a um personagem. E depois de 10 anos longe dos palcos e dos sets de filmagem ser convidada para viver Zélia Amador de Deus no cinema é uma honra. Pois Zélia é muito querida e admirada por mim, por artistas, por ativistas, pela intelectualidade, pela sociedade como um todo”, avalia Carol Pabiq. Logo, no entanto, ela sentiu o ‘peso’ da missão.

“Assim que recebi o convite, fiquei em choque e muito emocionada. Em seguida bateu um leve desespero e uma chuva de perguntas, dúvidas e reflexões. E agora? O que eu faço? Dez anos fora das artes cênicas… é um personagem que existe, é um personagem real. Ora pareceu fácil, ora pareceu difícil. Como interpretar uma personagem no cinema, que é uma pessoa real, sem imitar e ser tosco? Precisei revisitar técnicas, estudei Zélia, fiz uma pesquisa de informações e imersão, emoções e memórias. Inclusive, cheguei a me emocionar de verdade em alguns momentos, mexeu com o meu íntimo”, diz.

Parte da responsabilidade da missão foi amenizada a partir das conversas de Carol com Glauco Melo e Ismael Machado. “Foi quando percebi que não precisava construir um personagem, eu precisava esculpir o personagem que já estava dentro de mim”
Outro diferencial no curta é o uso de ilustrações animadas para contar outras passagens da vida de Zélia, assim como representar algumas emoções relacionadas à personagem. A tarefa coube a Josiel Paz, jovem ilustrador negro ‘queer’ que aos 21 anos, descobriu na arte um “alivio às dores que o racismo e as inúmeras fobias sofridas lhe causavam”.

“Estar nesse projeto, falando de Zélia especificamente, é entusiasmante e desafiador. Ela foi uma das primeiras professoras que tive na universidade, a primeira preta. E vê-la naquela posição me deu mais coragem para não desistir. Zélia não é qualquer professora. Ensinou a turma, apenas provocando debates, discussões, tirando máscaras que tapavam o racismo e a intolerância pré-existente advinda da nossa criação”.

Josiel é um mix. É artesão, ilustrador, drag queen e, em paralelo, poeta, maquiador, estilista, dançarino. Mas acima de tudo, destaca, uma pessoa preta. Por isso o sentimento de estar em trabalho ligado à Zélia Amador, é ainda mais especial. “Falar da vida dela, através da minha linguagem, da minha maneira, da minha arte, é não permitir erros, pela tão explícita história de luta dessa mulher. É falar também de mim, como pessoa preta em um espaço seu, mas tomado por gente que não a quer lá. Mas, ainda assim, está. Insiste e resiste. E sinto um imenso orgulho em saber que estou lá também por ela”.

“É um trabalho feito com muito carinho”, resume a produtora executiva do projeto, Aline Paes. Isso se reflete, inclusive nos procedimentos de segurança à saúde no processo de filmagem. Os depoimentos colhidos com Zélia foram cercados de todos os cuidados. A equipe manteve distanciamento, usou luvas, máscaras e pantufas. Antes de adentrar o apartamento da professora, todos foram submetidos a um verdadeiro banho de álcool em spray. “Nem microfone lapela usamos para não precisarmos tocar nela”, lembra Melo. “São cuidados necessários para preservar a equipe e os entrevistados”, complementa a diretora de produção Michelle Maia. Uma das pessoas a ceder depoimento para o curta foi Djamila Ribeiro, que destacou a importância de Zélia como pensadora e militante negra.

Com uma história de vida riquíssima, a produção recorreu a um historiador para pesquisar material não apenas sobre a personagem, mas também ao contexto histórico e político de cada época. Marcelo Gomes, que já possui experiência na mistura entre pesquisa histórica e produção jornalística é quem tem mergulhado nesse universo, mesmo com as limitações ocasionadas pela pandemia.

As filmagens já foram encerradas e a fase de edição deve começar em breve. A previsão é que entre meados de abril e início de maio, “Amador, Zélia” já esteja disponível para exibição. A primeira janela prevista é a TV Cultura do Pará, mas a intenção da equipe é que o filme percorra festivais de curtas e seja incorporado a canais pagos e plataformas de streaming o mais breve possível.

Site do projeto: www.amadorzeliaocurta.com.br

Equipe:

Glauco Melo – Diretor de Fotografia e co-direção

Ismael Machado – Roteiro e co-direção

Ygor Negrão – Filmmaker

Aline Paes – Produtora Executiva

Michelle Maia – Diretora de Produção

Brenda Paes – Assistente de Produção

Marcelo Gomes – Pesquisa

Marcelo Araújo Filho – Áudio

Carol Pabic – Atriz

Josiel Paz – Ilustração

Júlio Santos – Edição e Finalização